quinta-feira, 19 de maio de 2011

A vingança dos imóveis



Colocou o fone de ouvido e deu largada no shuffle.

- Ligar... Fat burn... Start - falou consigo.

Começou a andar lentamente; o ritual dos cinco minutinhos de aquecimento.

- "Born to be wild... Born to be wild..."- cantava.

Olhou ao redor. Alguns alunos corriam, outros levantavam peso. Uma senhora olhava fixamente para a televisão enquanto movimentava os pedais de sua bicicleta. Curioso, voltou a atenção para a caixa luminosa, estava no canal de esportes. O correspondente comentava, em closed caption, sobre o jogo do Peixe.

Lia, interessado, enquanto iniciava a corrida e, para não cair, segurou nas barras laterais do aparelho. Olhou para o painel a fim de cronometrar seu desempenho, mas ao invés dos tradicionais números e quilometragens, os tracinhos fluorescentes compunham uma frase: "Limite máximo de velocidade: 60km/h"

- Quê? - disse, estranhando e parando a música.

Tomáz esfregou os olhos, estava delirando? Ignorou o aviso e aumentou o passo, apertando o botão. O aparelho vibrou fortemente e soltou: "Eu disse: limite máximo de 60km/h. Entendeu agora, infeliz?"

- Que se dane o limite! Me multa então! - falou, intensificando ainda mais o exercício.

"Ah, você quer correr!?"

As pernas fortes de Tomáz não foram suficientes para a insanidade do aparelho. Soltava "Há! Há! Hás!" enquanto trucidava as articulações do jovem.

- Pare! Pelo amor de Tauron! – esbaforiu.

"Ué? Não queria queimar calorias? Mexe essas coxas de boi reprodutor!"

Estava em seu limite. Nunca havia corrido tanto e tão rápido. Usain Bolt tinha ficado no chinelo e lá onde ajudaria São Judas a encontrar as botas, ou as sapatilhas. Parecia uma centopéia transgênica.

"Tá cansado? Eu te ajudo!"

Deu a última gargalhada malcriada e prendeu o rapaz pelos tornozelos, com suas garras metálicas.

- Desgraçaaaaaaaaaaaaaaaaaada! - gritou, enquanto era retirado do plano.

A máquina chacoalhava-o como coqueteleira de barman, a dois metros do chão.

- Me solta! Me solta! - esperneava.

“Não!”

- Por favor!

"Tá bom!"

Tomáz bateu com tudo os glúteos na esteira.

"Você que pediu."

Aquilo doeria muito quando seu corpo esfriasse. Olhou atordoado para o aparelho. Nem frases malucas ou avisos mortais. Era um simples painel de esteira de academia. Não entendeu nada.


Polandesamente falando: objetos são aparentemente inofensivos e estáticos, e nitidamente maléficos quando irritados.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Entregando vidas



A poluição causava irritação aos seus olhos. Estava aumentando de tal maneira que em dias de Sol nem precisaria mais de óculos escuros. O constante soar das buzinas era extremamente irritante. Já havia se acostumado com o barulho ensurdecedor das grandes avenidas, um mau sinal para seu otorrino.

Mas o pior era quando São Pedro resolvia trabalhar. E olha que ele andava empolgadíssimo com horas extras esses dias. Só podia estar sendo remunerado. Sim, estava. E naquele exato momento.

A cidade parou diante da forte chuva, menos, Joaquim. Não podia simplesmente adentrar um restaurante e aguardar pelo cesso do dilúvio. Não podia ligar o "que se dane um resfriadinho" e pular feliz pelas poças ou andar de bicicleta espirrando água em todo mundo. Não. Era um carteiro, pelo amor de Deus! Tinha responsabilidades extremas com a sociedade. E se aquela mulher parada ali no trânsito da Berrini estivesse ansiosa pelo resultado de seu exame? E se a filha daquela outra tivesse lhe enviado um cartão postal da Finlândia dizendo que estava tudo bem e que sentia saudades?

Apesar de cansativo, era gratificante. Nada recompensava mais para ele do que ouvir um "obrigado!" sincero quando entregava uma correspondência. Claro que me refiro às pessoais. Nada de mala direta chatérrima de banco ou catálogo de sapatos. Os tabloides de mercado e os folhetinhos de candidatos a vereador não são entregues pelo Joaquim, não o culpe!

Sem escolha, vestiu sua capa de chuva e cobriu com cuidado o pacote de cartas. Só faltava uma, era para a Conceição. Uma jovem? Uma mulher mais vivida? Não sabia; só que o endereço era familiar, conhecia bem aquela região, tinha parentes lá.

Andou com dificuldade pelo conglomerado de pessoas na calçada. Como era injusto só as ambulâncias terem sirenes! Ia continuar seu rumo quando ouviu: "Uéuéué! Uéuéué! Uéuéué!..." Havia Ele atendido suas preces? Não. O carro branco com o sinal da cruz pedia passagem ao caos no asfalto. Um dos zilhões de automóveis tentou numa manobra arriscada abrir caminho. Nem o Senna conseguiria fazê-la. Abriu foi um belo buraco no carro da frente. O motorista, lesado, saiu às pressas, espumando:

- Seu filho da pu*& do ca^lh*! Não tá vendo que tá tudo parado, porr*%!? - gesticulava com uma das mãos, enquanto a outra formava um volume dentro do bolso de seu paletó.

- Des... Des... Desculpa! Eu não te vi! Tava preocupado em sair da frente da ambulância - respondeu o jovem, tremendo.

- Des... Desculpa!? DESCULPA!? - disse Fernando, ironizando e ficando cada vez mais irritado e vermelho.

Joaquim olhando a cena, perplexo, decidiu tentar ajudar. Dirigiu-se até os dois homens e disse:

- Calma, rapazes. Tudo se...

E a sirene continuava a gritar, a chuva a cair e os motoboys a buzinar.

- CALMA? CALMA!? - explodiu o motorista do carro batido.

- É, tudo se ajeita - disse Joaquim, aproximando-se dos dois.

Fernando retirou a mão do bolso. Não estava vazia. Apontou a arma para o rapaz e atirou.

- Não!!! - disse Joaquim, interceptando.

A bala atingiu seu ombro esquerdo, perto do coração. Um dos enfermeiros da ambulância segurou o criminoso e o outro correu para ajudar o ferido.

- Deixe-me ajudá-lo, senhor.

- Não. Eu preciso entregar esta carta.

- É claro que precisa, mas depois que salvarmos sua vida - rebateu, segurando-lhe o antebraço são.

- Não! - gritou, desvencilhando-se e esmurrando o enfermeiro.

- Seu maluco! Deixe eu te ajudar!

Mas Joaquim já havia começado a voltar para a calçada. Ajeitou o saco de cartas e segurou firmemente o ferimento para estancar o sangue. Andou o mais rápido que pôde. O enfermeiro disparou em seguida, mas o carteiro já havia se infiltrado na multidão, desaparecendo.

A rua Guararapes não estava longe, apertou o passo enquanto a dor o pressionava. Sabia que era praticamente insano o que estava fazendo, mas não podia simplesmente ir para o hospital. E se estragassem o envelope? E se o jogassem fora? Não permitiria.

Contornou uma das praças da avenida e encostou na árvore próxima para respirar. A dor aumentara e queimava sua pele, fazendo da chuva, ácida. Olhou para o céu negro e rezou. Abaixou a cabeça com cuidado e viu à frente: "RUA GUARARAPES", leu em voz baixa.

Atravessou o gramado e procurou o número 167. Havia decorado, tinha facilidade com algarismos. Quando pequeno só tirava notas altas em matemática e em educação física também, como podemos comprovar.

Avistou-a. Era uma casa simples de tijolos e um quintal cheio de plantas que giravam. Na verdade, era Joaquim que enfraquecia, não estava mais suportando. Encontrou a campainha escondida embaixo de uma folha e, com muito esforço, tocou-a.

Seus olhos demoravam cada vez mais para abrir. Era como se estivesse sonhando. Via seus pais assistindo televisão e ele pequeno brincando com seu carrinho vermelho. Ouvia sua música preferida. Sentia o cheiro delicioso do bolo de chocolate que sua avó fizera em seu 13º aniversário. Viu uma senhora no jardim da residência, e não era sua avó.

- Pois não, moço?

Ela não percebeu que o carteiro estava machucado. Talvez pela escuridão da rua ou, possivelmente pela chuva torrencial que ajudava a disfarçar o sangramento.

Joaquim largou o ferimento. Abriu a sacola. Sua mão tremia. Retirou o pequeno envelope com letras tão apressadas e, com cuidado para não molhá-lo, estendeu para o outro lado do portão. A senhora segurou a carta, ia aproximar os óculos dos olhos, mas quando viu o remetente, eles caíram. Olhou lacrimejante para o precioso visitante e disse:

- Obrigada.

Joaquim, cambaleando, arranjou forças para sorrir. Parou e esqueceu a dor. Parou e, simplesmente escutou o mais belo som. Aquele velho e confortável "obrigado!" foi a última coisa que ouviu.


Polandesamente falando: qual sua importância como indivíduo? A individualidade de cada um é tão forte a ponto de ser a prioridade de outro alguém? Certas coisas possuem extremo significado, como corresponder à algo. E tem pessoas neste mundo que distribuem essas preciosidades. Não é incrível?