domingo, 31 de julho de 2011

AAnônimoS


Desdobrou a toalha e jogou-a ao alto com cuidado. Vestiu a mesa de listras e utensílios. Os copos estavam perfeitamente posicionados ao lado esquerdo de cada prato e os talheres à direita. Aprontara com extremo empenho. Gostava de uma boa apresentação, a comida ficava mais gostosa.

Sorriu. Estava tudo impecável.

(Toc, toc, toc)

- Querido, vá ver quem é, por favor!

Fernando olhou pelo buraco da fechadura. Os sapatos pretos que já conhecia aproximavam-se. Abriu.

- Oi, papai! – disse, abraçando-o.

O homem retribuiu o gesto bagunçando-lhe os cabelos lisos. Andou até a sala e colocou sua pasta no sofá perto da tevê. O cheiro delicioso levou-o à cozinha.

- Boa noite, meu bem – cumprimentando a esposa e beijando-lhe os lábios.

- Boa noite! Como foi o trabalho?

- Ah, foi bem agitado. Teve um cliente que... Mas quantas vezes eu já disse pra não mexer naquela gaveta, mulher?! Que inferno! – Berrou, puxando a toalha da mesa num movimento rápido.

O barulho dos talheres tocando o chão e dos pratos quebrando distanciou o garotinho do desenho animado. Foi até a cozinha.

- Mas Rodolfo, eu só queria deixar a mesa bonita!

- NÃO INTERESSA!!! Ninguém pega a toalha da minha mãe!

Fernando, assustado, correu e escondeu-se embaixo da cama tapando os ouvidos. Seu quarto era o abrigo para dias frequentes como aquele. Por que brigavam tanto? Nunca entendera. Apesar de seus 7 anos, já questionava a estupidez da discussão por tolices.

Ao lado da poeira amiga, no piso frio, um quadrado rosado. Curioso, apanhou o objeto e levou-o para perto de seus olhos. Parecia um remédio, mas era atraente como uma bala. Como fôra parar ali? Os medicamentos ficavam no banheiro.

Continuou olhando, interessado. Os gritos perduravam. A dor por seus pais brigarem era intensa. Rasgou o envelope com os dentes e pôs o conteúdo na boca. “Diferente... gostoso” – pensou.

A doçura fazia-o sentir-se melhor. Agora sabia para onde correr e, a partir daí, começou a rezar para que brigassem sempre.


Polandesamente falando: diversos refúgios estão presentes na vida para o alívio sintomático do sofrer. Alguns são automáticos, imperceptíveis e mais perigosos que o próprio problema em si.

domingo, 24 de julho de 2011

Refeição? Ação!



Está cada vez mais difícil alimentar-se pelas ruas de São Paulo. Momentaneamente deixo a qualidade das refeições oferecidas pelos estabelecimentos e atenho-me ao ato.


O homem pré-histórico privava a vida dos animais para cevar-se. A atenção era somente no bater do coração da vítima e no roncar estomacal de si próprio.

Hoje acontece a matança humana. Cotoveladas, empurrões, gritos; tudo por causa de uma mesa: o objeto sagrado. É o novo ritual da alimentação. As horas antigas dedicadas à execução tornam-se o tempo de espera pela tão almejada comida. Alimenta-se os nervos; para só assim, em seguida, saciar realmente a fome.

Polandesamente falando: as presas não mais são animais da floresta; são os outros caçadores modernos, os dos objetos venerados.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Frutose vital



Observou-a tão vistosa. Já havia visto outras, mas não como aquela. A cerca envolta tornava-a quase sagrada. O vento, quando batia em suas folhas, fazia do movimento, hipnótico. Diariamente o garoto passava por aquela rua. Poderia fazer um caminho mais curto, menos sinuoso, mas fazia questão de ingressar naquele transe. Como era bela! As outras tinham seu charme, mas essa, um inexplicável encanto. Talvez fosse sua forma mais arredondada que as outras árvores, ou até mesmo seu colorido gracioso. O que importava é que as mangas que ali pendiam exalavam tal magia que, relutar, era impossível. Só de olhá-las, fantasiava seus sabores. A possível doçura acariciando sua língua deixava-o atônito e incitava-o à descoberta.

Viu um dos frutos caídos, sua metade inferior, escura, fazia notável tal fato. Por que estava ali isolado? Por que não junto aos outros? Por que despencara? O que o fez? Talvez alguém tivesse esbarrado no caule, provocando o acidente. Talvez o forte vento o tivesse feito. Talvez fosse apenas a ação da natureza, que decidiu assim. O menino não sabia; só desejava ardentemente recolocá-la na bela árvore e admirá-la até suas retinas exaurirem-se.


Polandesamente falando: A criação de expectativas nos leva a um nível irreal da consciência. Formula-se um estereótipo e, aquilo almejado, pode ser extremamente decepcionante ou sublime. A realidade torna-se dolorosa e indigerível, quando o que mais se quer é absorver apenas o sonho.