sábado, 19 de outubro de 2019

A quarenta e nove







- Um, dois, três… quarenta e sete… quarenta e oito… - Contava a guia.

Marlene viu todos já sentados dentro do ônibus, apenas a guia em pé com sua prancheta. Isso não era bom, realmente estava atrasada. Tentou caminhar mais rápido esquecendo por um segundo a artrite, artrose, osteoporose e todas as outras palavras difíceis que aqueles médicos inventavam. Achava um desaforo ter de decorar todos aqueles nomes, ainda mais os remédios que tinha que tomar para cada um. Era bem mais difícil do que pensar nas palavras cruzadas que religiosamente fazia todas as manhãs; não importava se o enigma era de quatro ou cinco letras, ela sempre fazia caber nos quadradinhos. Quem sentiria falta de uma vogal ou se importaria com uma rasura? Não iria mostrar sua obra-prima arquitetônica de tinta para ninguém mesmo. Palavras cruzadas - ou palavras criadas, como gostava de chamar - eram seu dom. O prazer de colocar duas letras em um único quadradinho era demasiado. Ela achava muito triste uma letrinha isolada em quatro paredes, sentiria-se solitária.

Chegou próximo à porta do grande veículo e Zé, vendo a passageira, a abriu soltando sua risada carinhosa.

- De novo, Lene? - disse o motorista.

- Culpa da artrite - retrucou Marlene, piscando para ele. Ela adorava que Zé a chamasse de Lene. Esse sim era um bom-partido. Bigodão branco reluzente combinando com sua camisa azul pastel e óculos escuros de policial sensual, como gostava. Ele era praticamente um ator de Loucademia de Polícia. Já havia lhe convidado inúmeras vezes para tomar um café, mas ele as recusara sempre com a mesma desculpa; ela não entendia por quê o “ah, se eu não fosse casado, Lene…” que ele dizia era motivo suficiente. OK, ela entendia sim, mas mesmo com os foras, derretia-se toda por aquela voz firme e continuava convidando só para ouvi-la uma vez mais.

A guia, notando a chegada da aluna mais aprontona, terminou sua contagem.

- Quarenta e nove. - Disse olhando feio para Marlene. - Muito bem, agora sim estão todos aqui. Vamos?! - Perguntou retoricamente.

O motorista girou a chave e o ônibus ganhou o asfalto da cidade.

- "Eu vou, eu vou, até o bingo eu vou… Jogar até cansar, jogar até cansar, eu vou… eu vou… eu vou, eu vou!" - cantavam os alegres vetustos.

Os amigos da melhor idade haviam se conhecido nas atividades semanais de ginástica do Sesc Campo Limpo e desde então planejavam uma que consideravam muito mais animada. Nada de rolar uma bolinha para lá e para cá (não eram gatos, ora!); nem de ficar de molho em uma piscina parecendo uma rodela de cenoura na canja de enfermos, levantando e abaixando os braços como asa de frango no ensopado, aquilo só servia para dar mais rugas nos dedos (como se as que têm já não bastassem) e criar frieiras, o que levaria a terem que comprar mais um remédio para cura, mais um palavra para decorar. Ser mais experiente era complexo.

Quase não dormiram na véspera ansiosos pelo passeio; haviam combinado para quarta-feira, assim não haveria tanta gente, não disputariam cadeiras e poderiam jogar por muitas horas - ou até que algum deles capotasse de sono.

Após aproximadamente trinta minutos do longo percurso até a Vila Mariana, com o ônibus desvencilhando-se dos buracos, e eles da bexiga teimosa gritando por libertação, finalmente chegaram.

- Muito bem, chegamos - disse a guia. - Vamos às regras: nada de comer doces escondido ou guardar no bolso e só lembrar dele quando for lavar a roupa melequenta de açúcar derretido; nada de bater com a bengala na perna de desconhecidos propositalmente só para tentarem atrapalhá-lo e, nada, eu disse nada, estão me ouvindo bem né?

- Sim, Maria!!!! - Responderam todos.

- Nada de fingir que estão dormindo, encostar o rosto no ombro do colega e espiar para ver como está “o jogo dele". Entendido?!

- Tá.. tá.. já sabemos - Disse Marlene, com deboche, levantando, caminhando apressada e sendo a primeira a sair do ônibus.

Quando todos haviam descido, o sol ainda brincava com a melanina daquelas peles cansadas. A alegria em seus rostos brilhava mais que o astro. Haviam sonhado com aquele momento, a estátua africana era a guardiã do lazer sagrado. Era muito maior do que haviam imaginado e perfeitamente esculpida em granito, os detalhes do rosto, mãos e pés era impressionante. De tanto olhar para sua imponente altura quase travaram o pescoço.

Passaram pela espessa porta e entraram em fila dupla no salão principal. Foram recebidos por atendentes muito simpáticos que logo mostraram o salão, as máquinas de caça-níquel e a segunda coisa mais importante para eles: o banheiro. Estavam tão metidos/poderosos/provocativos nesse passeio que nenhum deles estava usando fralda geriátrica. Era uma tremenda audácia.

Sentindo-se mais leves e prontos para perguntar onde ficava o maior atrativo do lugar - o bingo - foram surpreendidos:

- Todo mundo parado agora! - Disse repentinamente a voz forte e desconhecida.

A polícia havia chegado. Os excursionistas estavam incrédulos. No momento mais importante do passeio, quando finalmente iam jogar bingo eles mandaram todos saírem do local. Tantos dias para invadirem e foram justamente quando eles estavam ali. Insolentes!

Marlene, a líder, logo retorquiu:

- Senhor oficial, viemos aqui para nos divertir, programamos esse passeio há tanto tempo… por favor nos deixe ficar e nos divertir um pouco.

O policial respondeu:

- Sinto muito, senhora, este lugar não está legalizado e temos que levar todos para a delegacia para investigação.

Os senhores reclamaram em conjunto, mas não adiantou. O ônibus foi escoltado até a delegacia mais próxima. Quando chegaram foram alocados em cela única, improvisada com diversos bancos sem encosto. Prestaram depoimentos, um a um. Horas se passaram e a apreensão só aumentava, assim como a fome. Já se aproximada das 18h, era hora do jantar.

Sargento Almeida, olhando aqueles pobres velhinhos lembrou de sua mãe, já falecida, e como sentia sua falta. Não havia conseguido cuidar dela por seu ofício ser sempre corrido e sentia-se culpado de tê-los trazido, mas não poderia não o ter feito, era seu dever. O chefe não o permitia soltá-los até que investigassem todos do cassino e descobrissem quais os envolvidos no seu funcionamento ilegal. Pensando por um momento uma ideia surgiu… Saiu brevemente e retornou à cela.

- Quem está com fome? - disse o Sargento Almeida - trazendo duas caixas grandes de esfihas do Habib’s.

- Hum! Estamos todos! Adoramos esfiha do Habib’s - disseram.

Almeida entregou a eles as caixas, puxou um banquinho e sentou-se próximo . Comiam mais rápido que britadeira quando queria abrir um buraco no chão de pedra. Marlene, terminando de engolir o último pedaço da massa, disse:

- Alguém quer jogar bingo? - Tirando algumas bolinhas e cartela do vestido e colocando na mesinha da cela enquanto todos riam.

terça-feira, 26 de junho de 2018

Ah, o amor... (parte 15 de…)



É por ser indefinível que as reticências cabem tão bem ao amor. O amor causa a interrupção do tempo e exprime o conjunto de inúmeras emoções, justamente como elas.

É na inconclusão dos três pontos, em sua obrigatoriedade de sequência, seja ou não explícita, seja ou não pausada, na transformação desse sentimento que me atenho nessa reflexão.

Entendo o amor como etapas de mutação:

1) Estágio físico: a atração palpável entre duas pessoas;
2) Estágio familiar-coletivo: adoração não só pela pessoa, mas por todos aqueles que têm relação direta com o ser amado;
3) Estágio de sublimação: estima pelo o que o ser amado representa para si e para o mundo;
4) Estágio atemporal: crença absoluta na ligação de duas almas e em suas onipresenças atemporais universais;

Esses estágios permitem que nossa mente tente captar as características desse sentimento no intuito de compreendê-lo… assim como as reticências…


Polandesamente falando: O amor é a transformação infinda do silêncio voluntário da emoção.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

A mudança do começo




Recomeçar. O recomeço pode ser compreendido como mudança? Para recomeçarmos precisamos mudar algo? Vejo pessoas buscarem a mudança, mas será que a mudança em si não está em seu processo de busca? Pois, se altero alguma atitude para tentar obter outra e, se consigo, e se me mantenho “nessa outra” por mais tempo e por consequência, “essa outra" se torna usual, essa permanência já sairá do estado de mudança, ou seja, será que mudar é apenas o momento de transição?

Será que a mudança pode ser vista como algo que não é comum ao todo, isto é, o diferente, o não-usual? Uma das causas da mudança, ao meu ver, vem do costume e do incômodo. Acostumar-se, incomodar-se, mudar; aliviar-se?

Mas por que será que as pessoas precisam mudar? Será por que se eu tive uma experiência negativa quer dizer que, por consequência, esse estado que me encontro não é o ideal para mim, ou seja, preciso modificá-lo, encobrindo uma lembrança desconfortável?

E como mudar? Modificar o físico para uma instantânea percepção ou usar as alterações abstratas, como: mudança de comportamento, atitude, pensamento, etc.? Ou ainda, terceirizar a ação de mudar para a simples crença na fé da modificação sem necessariamente realizar alguma ação diferente?

E, finalmente, para que um novo começo? Uma provação à sociedade de sua capacidade de transformação ou simplesmente uma necessidade? 




Polandesamente falando: de todas as possíveis definições e reflexões que surgirão para “recomeço”, tenho certeza que a melhor delas seria "esperança".

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Pikachu da idade média





- Cê tá sabendo?


- Do quê?


- Dos caçadores.


- Caçadores?


- É, dos caçadores. Não ouviu?


- Ouviu o quê?


- O que estão falando por aí.


- O que estão falando por aí?


- Ai, você não presta atenção mesmo, né?! Estão falando que tem uns caçadores procurando pela gente.


- Pela gente?


- Sim.


- E o que eles querem?


- Fazer a gente de prisioneiro num outro lugar. Ouvi dizer que é quadrado... e virtual.


- Não! Quadrado não, por favor – disse amedrontado. - E por que alguém iria querer tirar a gente daqui? Tem tanta coisa melhor lá embaixo, olha – disse apontando com o braço para direita. Tem chiclete vermelho. Hum! Como gosto de chiclete vermelho! – falou animado.


- Pois é. Também não acreditei da primeira vez que ouvi, aí ontem tava falando com o Vitor, sabe, aquele que sempre bate a cabeça no teto quando pula?


- Putz se sei. Esse Vitor é muito tonto, meu. Já falei pra ele baixar a cabeça.


- Então, ele me contou que ontem tava lá quietinho esperando o jantar, daí de repente ele ouviu.


- O quê?


- Eles.


- Quem?


- Os caçadores.


- Não!


- Sim, estavam planejando vir aqui hoje e fazer... – e a frase foi interrompida pelo giro da maçaneta.

 

Polandesamente falando: não importa quanto antiga seja a brincadeira, sempre haverá caçadores por aí.

domingo, 11 de dezembro de 2016

NON DVCOR DVCO





Qual a sensação do pertencer? Ter uma família e ser amado? Relacionar-se com a sociedade e ser seu cidadão? Ter hábitos semelhantes a um grupo de pessoas? Morar e trabalhar em um local? 

E como pertencer se você não faz parte? Não fazer parte não por não querer, mas por querer ser igual. E por que “igual”? Por todo o conceito que “ser” significa para os homens. Você só é se tem uma classificação: numérica, locatícia, nominal.

Se a sociedade o define como não-cidadão é fadado à abstinência da dignidade de pertencer e se torna alheado para próprio mundo, crenças e regras sem a escolha que gostaria; oferta-se à fé da sobrevivência.


Polandesamente falando: não sou conduzido, conduzo-me à chance de ser em um mundo que me aprisiona.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Enegrece-se uma poesia



Na agonia da perda se encontra o desespero
Na busca pelo fim não se acha o recomeço

Se a luz recompensasse o pesar
O alívio transformaria dignidade em esperança
E do lamentar humano emergiria a animalesca vontade de reexistir

Polandesamente falando: a recompensa para a vida é a vida que se dá ao viver.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Ah, o amor... (parte 14 de...)






Dentre tantas mulheres apertadas, dentre tantas mensagens, rabiscos, memorandos, me ative a essas quatro linhas. Percebi que o bandeiro pode ser um psicólogo. Você, ali, sozinha, relaxada, só você e seus pensamentos, sentimentos. 


A porta do cubículo serve como bloqueio, um aparo do grito da necessidade de expor, desabafar. A porta não julga, não da feedback, não recrimina, apenas ouve, aceita, entende.


E depois de “conversar” com ela vem o alívio, resultado do processo de autoconhecimento. Não é lindo isso?



Polandesamente falando: o sentimento é tão incrível que é impossível prever a quantidade e maneiras de expressá-lo.