domingo, 19 de setembro de 2010

Descartes


Última pincelada de tinta, um soprinho e pronto. Magnífico. Para Godofredo, o encanto da obra finalizada superava um semestre de trabalho árduo, empenho e cansaço. Dona Melinda ficará satisfeitíssima - pensou. Depositou levemente o vaso na mesa de centro e sentou-se no sofá próximo, defronte à criação. Ficou a admirá-lo, relembrando todo o cuidado que teve para pintá-lo. Seu coração sorria, entregaria o presente para a mulher mais bela que já vira; sua amada.

Cessando devaneios, levantou. Vestiu-se elegantemente e com seu melhor perfume umedeceu o pescoço. Segurou o vaso cuidadosamente e pegou o buquê de flores logo ao lado. Decidido de que hoje seria o dia de finalmente impressionar sua vizinha e assim fazê-la notar seu amor, caminhou até a porta destrancando-a. O barulho do trinco se abrindo fez seu coração palpitar num rápido compasso. Com as mão suadas, fechou a porta atrás de suas costas.

Não precisou nem sequer caminhar, afinal, sua deusa morava ao lado. Deu um passo largo à direita, se virou e apertou a campainha. Impaciente e com medo, teve vontade de se retirar como os ínfimos blocos de combatentes vislumbrando o campo vasto de inimigos, mas pensou e decidiu ficar. A vizinha, notando sua presença, perguntou do outro lado da madeira:

- Quem é?
- Sou eu, Godofredo - respondeu.
- Ah, oi! - Disse Melinda abrindo a porta bruscamente.

O movimento assustou o artista, fazendo-o soltar o presente. O vaso espatifou-se em segundos, estampando o chão cinza. Envergonhada, a mulher disse:

- Desculpe. Ah, mas não tem problema. Você me compra outro.

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Os produtos não têm a qualidade de antigamente. Você comprava um eletrodoméstico de durabilidade fantástica. Sua avó quem o diga: em sua casa lá estava a veterana geladeira; amarelada pelos anos, mas trabalhando como nova.

Preocupavam-se com qualidade e não quantidade. Aí você pensa: "Mas, como e por que mudou?" O "como" pode ser explicado por H. Ford, que de certa forma ajudou a criar a garantia estendida. O "por que?" tem uma resposta mais simples: avanços de ganância e tecnologia.

Essa análise sociológica é aplicável também às situações cotidianas. Atualmente tudo tornou-se descarte. O valor da palavra, a amizade verdadeira, o amor... É muito prático, joga-se fora e pega-se o novo. É a linha de produção das mercadorias da vida, postas em prateleiras de fundo falso.

Polandesamente falando: não descarte as coisas importantes em sua vida só por apresentarem a possibilidade de serem substituíveis. Às vezes a troca malfeita torna-se arrependimento irreversível. Valorize o que e quem você gosta. Sim, não descarta-se o fato de poderem ser repostos, mas nunca se esqueça, são sempre únicos.

2 comentários:

  1. Não sei em que encruzilhada da vida,sem perceber, deixamos de nos importar com o que realmente é importante: educação,respeito, amor, honestidade.
    Em muitos aspectos nos tornamos egoístas,
    quando seria tão mais fácil e gratificante compartilharmos.

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  2. Quando se trata de pessoas, todas tem seu valor, e por seu valor, nenhuma é substituivel, o importante é sempre somar, nunca subtrair...

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